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Reconceituando a Inteligência: Da Medição Psicrométrica à Adaptação Biológica

A crítica principal recai sobre a dissonância entre a inteligência tradicionalmente medida e a adaptação real do indivíduo ou da espécie.

por Redação CPAH

A concepção tradicional de inteligência, fortemente baseada no fator geral (g), tem sido amplamente aceita por mais de um século como um padrão para mensuração da cognição humana. No entanto, Robert J. Sternberg propõe uma crítica contundente a esse paradigma, ao sugerir que o modelo psicométrico vigente, ainda que útil para prever desempenho escolar ou ocupacional, falha em capturar o cerne evolutivo e adaptativo da inteligência. Em seu artigo “A Theory of Adaptive Intelligence and Its Relation to General Intelligence”, Sternberg argumenta que a verdadeira inteligência, em termos biológicos, deve ser compreendida como a capacidade de adaptação ampla — não apenas a mudanças ambientais, mas à modificação e à seleção dos próprios ambientes de modo a garantir a sobrevivência da espécie humana (Sternberg, 2019).

A crítica principal recai sobre a dissonância entre a inteligência tradicionalmente medida e a adaptação real do indivíduo ou da espécie. Por exemplo, pessoas com altos escores de QI têm sido historicamente capazes de desenvolver tecnologias como armas nucleares e combustíveis fósseis, cujas consequências ambientais e sociais caminham em direção à autodestruição coletiva. Isso revela, segundo o autor, uma forma de inteligência “geral” que pode ser cognitivamente sofisticada, mas biologicamente disfuncional. A inteligência que leva ao colapso ambiental ou ao colapso civilizacional não pode ser considerada verdadeiramente adaptativa, pois falha em preservar as condições mínimas de perpetuação da vida humana (Sternberg, 2019).

Sternberg propõe, assim, o conceito de “inteligência adaptativa”, ancorado em uma perspectiva evolucionista. Esta forma de inteligência não apenas permite a sobrevivência individual, mas favorece comportamentos que promovem a continuidade da espécie e a manutenção dos ecossistemas que a sustentam. Curiosamente, ele ressalta que habilidades tradicionalmente não valorizadas nos testes de QI — como o conhecimento ecológico de populações indígenas ou a navegação por meios naturais sem instrumentos tecnológicos — podem representar formas mais autênticas de inteligência, pois contribuem diretamente para a sobrevivência em contextos reais (Sternberg, 2019).

Além disso, o autor demonstra como o modelo ocidental de inteligência tem uma forte carga cultural, sendo construído a partir de valores individualistas e acadêmicos. Isso gera uma validação circular: testes de inteligência medem aquilo que definimos culturalmente como sendo inteligência, reforçando a hegemonia de certos padrões cognitivos em detrimento de outros. Sternberg denuncia essa limitação ao argumentar que a inteligência, se realmente pretende ser um conceito científico e universal, deve transcender os vieses culturais que a moldam e se alinhar com princípios biológicos de adaptação (Sternberg, 2019).

No campo educacional, as implicações são profundas. Se aceitarmos a premissa de que inteligência é, ou deveria ser, essencialmente adaptativa, então os sistemas educacionais precisam ir além da promoção de habilidades analíticas e memoriais. Seria necessário fomentar também competências práticas, criativas e, sobretudo, sábias — aquelas que orientam o uso do conhecimento para fins coletivamente benéficos e sustentáveis. Segundo Sternberg, a ausência dessa abordagem holística nos currículos atuais pode estar contribuindo para a crise global de governança ambiental e social que enfrentamos (Sternberg, 2019).

A proposta de Sternberg é, assim, uma reconceituação necessária do que significa ser inteligente em um mundo ameaçado por suas próprias criações. Ele aponta que a verdadeira inteligência é aquela que evita a extinção, não a que a torna inevitável. Essa visão nos obriga a rever não apenas os testes de QI, mas os próprios objetivos do ensino, da política científica e da cultura tecnológica moderna.

Referência:
STERNBERG, Robert J. A Theory of Adaptive Intelligence and Its Relation to General Intelligence. Journal of Intelligence, v. 7, n. 4, p. 23, 2019. DOI: 10.3390/jintelligence7040023.

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