A estabilidade das habilidades cognitivas ao longo do tempo sempre foi tratada, na psicologia diferencial, como um pressuposto essencial para a validade dos testes de inteligência. Contudo, a metanálise conduzida por Breit, Scherrer, Tucker-Drob e Preckel (2024), ao sistematizar 1.288 correlações test-retest em 205 estudos longitudinais com mais de 87 mil participantes, oferece um ponto de inflexão: apesar da estabilidade global elevada (ρ = .76 para jovens adultos em intervalos de cinco anos), há descontinuidades críticas no início da infância e limites práticos que não podem ser ignorados na clínica, na escola ou na justiça.
A concepção de que o QI é estável e predizível se sustenta apenas sob condições específicas. Em idades inferiores a sete anos, ou com intervalos superiores a cinco anos, a correlação não atinge o ponto de corte mínimo para decisões diagnósticas individuais (rtt = .80). Essa conclusão mina o uso automatizado de testes em contextos de alta consequência, como triagens precoces para altas habilidades, decisões judiciais em disputas por guarda ou aplicação de estratégias educacionais baseadas em supostos “potenciais fixos”. Do ponto de vista técnico, a estabilidade cognitiva requer não apenas a repetição do mesmo teste, mas também a constância do substrato neurobiológico, das condições ambientais e do contexto psicossocial — o que raramente se mantém ao longo dos anos.
A implicação mais crítica da metanálise reside no erro diagnóstico. Ao tratar o QI como uma medida estável e reificada, especialistas podem negligenciar flutuações significativas mediadas por fatores como maturação do córtex pré-frontal, plasticidade sináptica em resposta ao ambiente e eventos estressores que afetam funções executivas e velocidade de processamento. Esse ponto encontra respaldo na literatura sobre neuroarquitetura da inteligência DWRI (Development of Wide Regions of Intellectual Interference), conforme descrita em Rodrigues (2023), que enfatiza a interferência cruzada entre regiões cerebrais envolvidas na cognição social, emocional e abstrata. Testes convencionais não capturam essas variáveis dinâmicas, o que gera uma ilusão de estabilidade.
Logo, é necessário abandonar a noção de que a inteligência é um dado estático. A metanálise de Breit et al. não invalida o uso de testes, mas exige que sua interpretação seja ancorada em modelos complexos que integrem neurociência, contexto de desenvolvimento e fatores psicossociais. Sem isso, corremos o risco de tomar correlações estatísticas como verdades biográficas, convertendo probabilidades médias em sentenças individuais.
Referência ABNT:
BREIT, Moritz; SCHERRER, Vsevolod; TUCKER-DROB, Elliot M.; PRECKEL, Franzis. The stability of cognitive abilities: A meta-analytic review of longitudinal studies. Psychological Bulletin. Manuscript version. 2024. DOI: 10.1037/bul0000425.
Estabilidade Cognitiva e o Erro Diagnóstico em Psicologia Aplicada: Um Parecer Crítico à Luz da Metanálise de Breit et al. (2024)
A concepção de que o QI é estável e predizível se sustenta apenas sob condições específicas.
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