Por vezes, ao navegarmos nas correntes turvas do que chamamos o social, nos deparamos com certos monstros, filhos da indigência intelectual festejada pelos que não se importam em como conhecer. Não quero eu, prezado leitor, a quem já estimo ainda que não o conheça, atraí-lo ao redemoinho do racionalismo puro, armadilha à qual muitos se atiraram com avidez, apenas para serem esmagados em uma espiral de destruição. No entanto, em situações nas quais as quimeras da causalidade (relação entre eventos) e da indução (inferências empíricas) renascem, devemos recorrer aos clássicos para que combatamos, primeiramente em nós mesmos, as suas tentações.
Respectivamente e por ordem cronológica, resgato o ensaio “Dos coxos” (1595), de Michel de Montaigne (1533-1592), cujo ceticismo sofisticado, na melhor tradição pirrônica, desvela a trama da causalidade. Diferentemente do que o título pode nos levar a pensar, não se trata de sarcasmo contra os que enlaçam causa e efeito sem critérios para a relação, mas uma referência direta às crendices dos quinhentos. Ora, ao passar por um camponês claudicante e, pouco após, ser acometido de um episódio de má sorte, o nascente indivíduo moderno, com toda a certeza de seu ser, concluía que os eventos estavam necessariamente ligados.
O ridículo dessa busca desesperada para encontrar causa na coincidência nos provoca deleite, nesta posição privilegiada que é o presente, futuro daqueles que apedrejavam os coxos para que se afastassem das vilas. Porém, é com profundo desgosto que somos obrigados a reconhecer formas contemporâneas dessa imposição (i)lógica, o que nos impõe, assim como a Montaigne, o papel de observadores preocupados, mas não abatidos. É função das mentes audaciosas abrir caminho no atoleiro do pensamento simplificador, para que os que venham atrás tenham uma passagem menos difícil.
Dessa forma, cabe a nós, desbravadores da ciência, atentarmos ao solo argumentativo por onde nosso intelecto se escora para irmos adiante. O que isso significa? Ao levantarmos uma hipótese, por vezes já nos embriagamos em nossas próprias conclusões, ou melhor, nos apaixonamos, colocando-nos dispostos a defendê-la com toda a intensidade de nosso ser. Grave erro. Assim como uma amante indiferente, uma ideia que se apressa em virar certeza – o viés da confirmação – é cruel e nos deixa atirados à sarjeta. Há de se desconfiar, antes de tudo, de nossas próprias intenções: queremos conhecer ou precisamos demonstrar?
Passando ao caso seguinte desta rápida discussão, nos vemos atraídos ao farol do problema da indução, elaborado por David Hume (17111776), mas desenvolvido com maestria por Karl Popper (1902-1994). Este, em sua obra “A lógica da pesquisa científica” (1934), resgata o célebre exemplo dos cisnes. Caso você, prezado leitor, não o conheça, aqui está: até a descoberta do cisne negro australiano, era senso comum que todos os indivíduos da espécie eram brancos, pois era o que se observava e, portanto, o que se conhecia. Isto é, o empirismo da época concordava que bastava observar-se um fenômeno determinado número de vezes para que se extraísse dele conclusões.
Isso não apenas é falso, como também é um vício que o teórico austríaco percebeu no meio científico do início do século XX, supostamente livre da ingênua dedução dos cisnes. Contudo, o advento de teorias inovadoras (o leitor, por favor entenda que não darei exemplos neste breve texto, pois abomino o polemismo e confio em sua iniciativa) levou Popper a criar uma nova estratégia contra o predomínio de um intuitivismo empirista (ou empirismo ingênuo ou indutivismo dogmático). Assim, nasceu o conceito de falseabilidade, ou seja, para que uma hipótese possa ser considerada válida, deve ser possível prová-la incorreta.
Buscar o falseamento de sua hipótese, mais do que um princípio, deve ser a meta do cientista. É contraintuitivo, eu sei, mas é aí que está a beleza da proposição popperiana: uma teoria é tanto mais forte quanto mais ela é testada, e basta que seja derrubada uma única vez (apenas um cisne negro) para que ela precise ser revisada. Isso não deve ser um desestímulo, muito pelo contrário. Enquanto pudermos testar hipóteses e teorias, o exercício lúdico das descobertas jamais cessará. Afinal, o verdadeiro crescimento está no processo do conhecimento; os resultados que extraímos dele são a merecida recompensa, mas também carregam a melancolia do fim de um projeto.
Chegada a hora de nos despedirmos após este humilde solilóquio, cabe a mim solicitar seu perdão, caro leitor, pois sei que necessariamente o ofendi, seja por excessos ou por omissões. Se, no entanto, consegui ajudá-lo, neste exercício de aquecimento do intelecto, a exorcizar um ou outro demônio das certezas que assombram nossa mente, ponho-me muito contente e convido-o a continuar celebrando a dúvida. A propósito, esta é a figura do cisne coxo do título que escolhi: um totem (ou carranca) que lhe entrego para afastar os maus espíritos da causalidade e da indução. Se há alguma superstição que acolho sem arrependimentos, certamente é esta:
o não saber me guia.
*Jornalista e mestre em comunicação, idólatra da dúvida.