Com a divulgação dos dados do Censo Demográfico 2022, o Brasil dá um passo fundamental para a compreensão de sua própria realidade ao incluir, pela primeira vez, informações sobre o diagnóstico de autismo. Este é um marco essencial, fornecendo um retrato inicial e uma base indispensável para políticas públicas e pesquisas futuras.
Segundo o levantamento do IBGE, 2,4 milhões de brasileiros foram diagnosticados com transtorno do espectro autista (TEA) por algum profissional de saúde. Este número representa 1,2% da população do país. Os dados revelam uma prevalência maior entre homens (1,5%) do que entre mulheres (0,9%), totalizando 1,4 milhão de homens e 1,0 milhão de mulheres com diagnóstico.
O Censo detalha que o diagnóstico é mais comum nas faixas etárias mais jovens, com o pico entre 5 e 9 anos (2,6%). Crianças e adolescentes de 0 a 14 anos somam 1,1 milhão de pessoas com autismo. A prevalência é notavelmente maior entre meninos de 5 a 9 anos (3,8%) e de 0 a 4 anos (2,9%). Regionalmente, a proporção é bastante similar entre as Grandes Regiões (em torno de 1,2%), com o Sudeste concentrando o maior número absoluto devido à sua população. A desagregação por cor ou raça aponta maior percentual entre brancos (1,3%) e menor entre indígenas (0,9%).
Os dados sobre escolarização também são notáveis. A população com autismo apresentou uma taxa de escolarização superior (36,9%) à da população geral (24,3%). Essa diferença é explicada, em parte, pela concentração de diagnósticos nas idades escolares. Mais de dois terços dos estudantes com autismo estão no ensino fundamental. Contudo, o levantamento também aponta desafios: a taxa no ensino superior cai significativamente (0,8%), e uma grande parcela das pessoas com 25 anos ou mais com autismo se encontra no grupo com menor nível de instrução (sem instrução e fundamental incompleto) em comparação com a população geral.
Agora, a questão que surge, é a comparação com outros contextos. Observamos por exemplo uma estimativa média para a população dos EUA (estudos do CDC – Centro de Controle e Prevenção de Doenças) focam em faixas etárias específicas, no entanto, combinando os dados, pode-se estimar uma prevalência média de cerca de 2,5% a 3,0% da população total geral, o que equivale a aproximadamente 1 em 33 a 1 em 40 pessoas com autismo nos EUA. No entanto, a diferença entre o dado brasileiro (1,2%, ou aproximadamente 1 para cada 83 pessoas) e os dados americanos (entre 2,5% e 3,0% ou de 1 em 33 a 1 em 40 pessoas) é, de fato, expressiva e levanta questionamentos pertinentes.
Quais seriam os motivos para uma diferença tão acentuada, caso esses números comparativos sejam precisos? A subnotificação no Brasil é uma possibilidade muito forte e plausível. Os dados do Censo 2022 foram coletados a partir da declaração de um informante do domicílio sobre se algum morador havia sido diagnosticado com autismo por um profissional de saúde. Este método, embora prático para uma pesquisa de larga escala como o Censo, depende diretamente do acesso prévio a um diagnóstico formal e reconhecido.
Vários fatores podem influenciar esse acesso e, consequentemente, as estatísticas reportadas:
- Acesso a Profissionais Qualificados: Obter um diagnóstico de TEA requer avaliação por profissionais especializados (médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais). A disponibilidade desses especialistas varia enormemente no Brasil, especialmente em regiões mais remotas ou com menos infraestrutura de saúde.
- Barreiras Socioeconômicas: O custo das consultas e avaliações, mesmo no sistema público, pode ser uma barreira. Longas filas de espera e dificuldade de acesso a serviços especializados afetam desproporcionalmente populações de menor renda.
- Conscientização e Informação: O nível de conhecimento sobre o TEA na população e até mesmo entre alguns profissionais de saúde pode ser insuficiente, atrasando ou impedindo a busca por um diagnóstico formal. O estigma também pode ser um fator.
- Diferenças Metodológicas: Pesquisas em outros países podem utilizar metodologias distintas para estimar a prevalência (por exemplo, triagens em escolas, análise de registros de saúde de forma mais abrangente, estudos baseados em critérios comportamentais e não apenas em diagnóstico formal declarado), o que pode levar a números diferentes.
A maior prevalência encontrada pelo IBGE nas idades mais jovens, especialmente em idade escolar, pode indicar que o acesso ao diagnóstico está melhorando ao longo do tempo para as novas gerações, talvez impulsionado pela maior conscientização e pela inclusão escolar. No entanto, a menor prevalência em grupos etários mais velhos pode refletir tanto uma prevalência real menor (menos provável geneticamente) quanto um acesso ao diagnóstico muito mais limitado no passado ou uma menor busca por diagnóstico na vida adulta, quando as características podem se manifestar de forma diferente ou os suportes necessários são outros.
Em suma, os dados do Censo 2022 são um ponto de partida essencial e inestimável para entender o autismo no Brasil sob a ótica do diagnóstico formal. Contudo, a metodologia empregada, focada na declaração de diagnóstico por profissional de saúde, sugere que o número de 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas representa, provavelmente, um piso para a prevalência real do TEA no país. A comparação com números de outros países deve ser feita com muita cautela, considerando-se as profundas diferenças nos sistemas de saúde, acesso ao diagnóstico e metodologias de coleta de dados. A diferença observada é um forte indicativo de que a subnotificação no Brasil, impulsionada pelas barreiras de acesso ao diagnóstico, é uma realidade que precisa ser enfrentada para que tenhamos um retrato cada vez mais preciso da população autista e possamos garantir os suportes necessários.