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Soroterapia: Entre o Prometido e o Evidente — O Limite da Medicina Baseada em Evidências

por Redação CPAH

Artigo de opinião | Dra. Jacy Maria Alves

A crescente adesão à soroterapia reflete não apenas uma busca por bem-estar, mas também uma inquietação contemporânea com o corpo, o desempenho e a passagem do tempo. Como médica endocrinologista com formação em instituições de excelência e atuação clínica comprometida com a ética e a ciência, observo com preocupação a banalização de procedimentos que deveriam ser restritos ao campo médico e ao rigor diagnóstico.

Nos últimos anos, a infusão intravenosa de vitaminas, minerais e outras substâncias — promovida como forma de “embelezamento”, “detox” ou “revitalização” — tem sido oferecida fora de contextos clínicos apropriados, muitas vezes em estabelecimentos que não possuem estrutura para lidar com complicações imediatas como reações anafiláticas, infecções ou sobrecargas orgânicas. Essa prática, por vezes romantizada, não encontra respaldo em consensos científicos das principais sociedades médicas.

A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN) são unânimes: a suplementação intravenosa só deve ser realizada mediante diagnóstico preciso, em situações como má absorção intestinal, síndromes de depleção ou restrições alimentares documentadas. Nessas circunstâncias, o procedimento é justificado, mas jamais isento de riscos. Envolve avaliação laboratorial criteriosa, acompanhamento médico contínuo e ambiente seguro.

A via intravenosa ignora os mecanismos homeostáticos do trato digestivo e renal. O organismo, em sua inteligência biológica, regula o quanto absorve e utiliza. Intervindo diretamente na corrente sanguínea, quebram-se essas barreiras protetoras. Micronutrientes em excesso — especialmente os lipossolúveis, como vitaminas A, D e E — podem se acumular, comprometendo rins, fígado, e desencadeando quadros de hipervitaminose e toxicidade.

Casos como o do deputado estadual Carlos Alexandre, internado após quadro de intoxicação por cromo decorrente da soroterapia, não devem ser encarados como exceções. Representam alertas clínicos e éticos. O fato de que um procedimento terapêutico tenha sido convertido em serviço estético de balcão escancara o distanciamento entre a prática médica e a lógica mercadológica.

Há uma desconexão perigosa quando se oferece um procedimento invasivo como um produto de consumo imediato. A medicalização do cotidiano, aliada à promessa de resultados rápidos, compromete o princípio fundamental da Medicina: primum non nocere — antes de tudo, não causar dano.

Não se trata de condenar a inovação terapêutica, tampouco negar a importância da medicina personalizada. A reposição de nutrientes pode, sim, ser uma estratégia salvadora quando bem indicada. Mas quando feita sem base clínica, converte-se em risco evitável.

A saúde exige mais do que promessas. Exige análise crítica, responsabilidade e compromisso com a ciência. Atalhos quase sempre cobram caro. E na medicina, esse custo pode ser a própria integridade física do paciente.

A verdadeira longevidade, o verdadeiro desempenho e a verdadeira beleza ainda residem na constância de escolhas sustentáveis: sono regular, alimentação equilibrada, atividade física, saúde mental preservada e vínculos humanos significativos. Não há soro que substitua isso.

Dra. Jacy Maria Alves
Médica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Residência em Clínica Médica e Endocrinologia
CRM ativo – atuação ética, baseada em evidência científica

Alguns destaques

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