João Marcello Borba Leite – Neurologista e Neurofisiologista Clínico
Introdução
A obesidade é hoje uma das maiores crises de saúde do século XXI. O aumento exponencial da prevalência em praticamente todos os continentes não pode ser explicado por mudanças genéticas, que acontecem ao longo de séculos, mas por transformações rápidas e profundas no ambiente alimentar e social. Ainda assim, boa parte da comunidade científica e médica insiste em frases de efeito como “obesidade não é uma escolha”, deslocando o foco para a biologia individual e deixando em segundo plano o verdadeiro motor da epidemia: o ambiente.
O que a ciência já comprovou
Há consenso robusto de que a expansão dos alimentos ultraprocessados — ricos em aditivos, açúcar refinado, gordura industrializada e pobres em fibras — é o principal fator por trás da escalada global da obesidade. A isso se somam a urbanização acelerada, o sedentarismo ligado à vida moderna e a exposição crescente a telas e transportes passivos.
A genética entra como modulador. Existem variantes que influenciam a resposta de circuitos hipotalâmicos reguladores da fome e da saciedade, bem como genes que modulam a sensibilidade dopaminérgica aos estímulos alimentares. Mas esses fatores aumentam probabilidade, não determinam destino. É o ambiente que decide quem, quando e quanto adoece — salvo nos raros casos de obesidade majoritariamente genética, geralmente associada a variantes raras de forte expressão fenotípica.
O discurso oficial e seus limites
O reconhecimento da obesidade como “doença crônica multifatorial” pela OMS e pela AMA trouxe ganhos: redução do estigma, maior aceitação social do tratamento e ampliação da cobertura médica. Mas a simplificação em slogans como “não é escolha” cria uma impressão enganosa de inevitabilidade, quando na maioria dos casos se trata de interação entre vulnerabilidade individual e ambiente adverso.
Essa opção discursiva também tem implicações políticas. É mais fácil promover campanhas genéricas de estilo de vida saudável ou exaltar medicamentos modernos do que enfrentar diretamente os interesses da indústria alimentícia e seus produtos ultraprocessados.
Neurologia e obesidade: a captura do cérebro
Na prática clínica, observamos que muitos pacientes com obesidade apresentam hiperatividade em vias de recompensa dopaminérgica e maior sensibilidade ao reforço alimentar. Os ultraprocessados são construídos para explorar exatamente essa vulnerabilidade: alta densidade calórica, absorção rápida e estímulo intenso dos circuitos mesolímbicos, em padrões que lembram o funcionamento de drogas de abuso.
Portanto, quando dizemos que “não é apenas escolha”, estamos na verdade descrevendo um sequestro neural: um ambiente projetado para sabotar mecanismos de autocontrole. Não é falha moral do indivíduo, mas tampouco é um determinismo absoluto.
O ponto cego das políticas públicas
Se a meta fosse de fato reduzir obesidade em larga escala, seria natural esperar campanhas globais defendendo dietas centradas em vegetais minimamente processados e a eliminação dos ultraprocessados. Não se trata de impor vegetarianismo universal — eu mesmo não sou vegetariano —, mas de reconhecer que essa seria uma das políticas mais eficazes em saúde pública já vistas, com impacto não apenas em obesidade, mas também em diabetes, doenças cardiovasculares e até saúde mental.
A ausência de medidas nesse sentido revela o impasse: é politicamente mais simples adotar discursos contra o estigma e celebrar novas medicações do que enfrentar lobbies bilionários e desafiar tradições culturais alimentares profundamente enraizadas.
Conclusão
O discurso de que “obesidade não é uma escolha” ajudou a reduzir o preconceito e deve ser valorizado nesse aspecto, mas não pode ser confundido com a realidade científica. A obesidade surge da interação entre vulnerabilidade biológica e um ambiente alimentar disfuncional, sendo este último o fator decisivo.
Os tratamentos médicos de maior eficácia, obviamente quando bem indicados, como a cirurgia bariátrica e os agonistas do GLP-1, devem ser plenamente valorizados e oferecidos aos pacientes, de preferência com políticas de redução de custos para ampliar o alcance populacional. Mas se quisermos realmente enfrentar a pandemia, não basta medicalizar. É preciso coragem para reformar o sistema alimentar, limitar a penetração dos ultraprocessados e estimular dietas baseadas em vegetais. Do contrário, continuaremos tratando efeitos enquanto as causas estruturais permanecem intocadas.

