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Estudo determina que jogadores de Xadrez não tem QI muito alto

Durante décadas, investigações em xadrez demonstraram que o desempenho de alto nível está fortemente apoiado por um grande repositório de conhecimento específico de domínio, adquirido ao longo de prática deliberada e estruturada.

por Redação CPAH

Introdução

O xadrez é frequentemente considerado um “drosophila” da psicologia cognitiva, dado o extenso interesse em compreender as bases dos níveis de desempenho de especialistas nessa área. Durante décadas, investigações em xadrez demonstraram que o desempenho de alto nível está fortemente apoiado por um grande repositório de conhecimento específico de domínio, adquirido ao longo de prática deliberada e estruturada. No entanto, permanece controverso até que ponto características individuais gerais, especialmente a inteligência, contribuem para a aquisição e manutenção dessa expertise. Enquanto alguns autores argumentam que o quociente de inteligência (QI) é irrelevante ou apenas fracamente relacionado ao desempenho de especialistas (Ericsson & Lehmann, 1996), outros estudos apontam que inteligência pode explicar parcela significativa da variação em realizações de alto nível (Ceci & Liker, 1986; Brody, 1992). Nesse contexto, Grabner, Stern e Neubauer (2007) conduziram um estudo psicométrico abrangente para investigar a relação entre diversos componentes de inteligência, variáveis de personalidade, experiência em xadrez e o nível de expertise em jogadores adultos de torneios.

Objetivos

Os autores estabeleceram três objetivos principais:

1. Avaliar a associação entre diferentes componentes de inteligência (verbal, numérica e figural) e o nível de expertise em xadrez, medido pelo ranking ELO dos participantes.

2. Examinar a contribuição da experiência em xadrez — tanto em termos de prática atual (incluindo atividades de prática deliberada) quanto de trajetória prévia (idade de início, tempo de filiação a clubes, número de partidas em torneio) — para o desempenho em xadrez.

3. Explorar a influência de traços de personalidade e competências emocionais (por meio de questionários padronizados) na predição do nível de expertise.

Método

Participantes: 90 jogadores de xadrez de torneio (87 homens e 3 mulheres), com idades entre 15 e 65 anos (M = 36,23; DP = 13,29). Os rankings ELO variaram de 1311 a 2387 (M = 1869; DP = 247), abrangendo desde intermediários até grandes mestres em potencial.

Instrumentos de inteligência: Utilizou-se o Intelligenz-Struktur-Test 2000 R (I-S-T 2000 R; Amthauer et al., 2001), que fornece pontuações padronizadas (M = 100; DP = 15) nos seguintes domínios:

Inteligência Verbal: funcionamento linguístico (compreensão de frases, analogias e similaridades verbais).
Inteligência Numérica: desempenho em tarefas aritméticas, séries numéricas e operações matemáticas.
Inteligência Figural: habilidades visuo-espaciais (seleção de figuras, rotação mental de cubos e matrizes).
Inteligência Geral (g): índice composto pelos três domínios acima.

Questionário de xadrez:* Incluiu seção sobre dados biográficos (idade de início em xadrez, filiação a clubes, pausas ativas), registro de partidas em torneios (número de jogos e percentual de resultados em 2003-2004), atitude em relação ao xadrez (importância subjetiva, prazer ao jogar, motivação para prática e performance), e estimativa de horas semanais em diferentes atividades de prática (prática individual com livros, uso de software, prática com parceiros, partidas informais, aulas dadas, aulas recebidas, acompanhamento de torneios na mídia). Cada atividade foi avaliada em termos de *prática deliberada* seguindo os critérios de Ericsson et al. (1993): grau de contribuição para melhoria de desempenho, esforço exigido e prazer inerente.

Personnalidade e competências emocionais:

Inventário de Personalidade NEO-FFI (Costa & McCrae, 1989; tradução de Borkenau & Ostendorf, 1993): avalia cinco fatores (neuroticismo, extroversão, abertura, amabilidade e conscienciosidade), com T-scores padronizados (M = 50; DP = 10).

Questionário de Competências Emocionais (FEK; Freudenthaler & Neubauer, 2005): mede autoavaliações em seis áreas: percepção de emoções próprias, percepção das emoções alheias, controle da expressão emocional, mascaramento de emoções, regulação das próprias emoções e regulação das emoções de outros, também em T-scores (M = 50; DP = 10).

Procedimento: Testes aplicados em grupos de 2 a 14 participantes, em ambiente controlado, sem limite de tempo para questionários. A bateria completa demandou cerca de 3 horas.

Análise de dados: Foram computed correlações de Pearson (ou Spearman quando necessário) entre ELO e cada variável, além de regressões lineares múltiplas para verificar contribuições independentes. O nível de significância foi fixado em 5%.

Resultados

1. Perfis de inteligência

Médias comparadas ao normativo (I-S-T 2000 R):

Inteligência Geral (M = 113,53; DP = 14,05) foi significativamente acima da média normativa (100), t(89) = 10,60, p < 0,01.
Inteligência Numérica (M = 116,41; DP = 14,15) mostrou a maior elevação, aproximadamente um desvio-padrão acima do esperado, t(89) = 12,02, p < 0,01.
Inteligência Verbal (M = 108,41; DP = 13,36) e Inteligência Figural (M = 106,14; DP = 15,41) também excederam os normativos, ambos p < 0,01.
Correlação entre QI e ELO:

Inteligência Numérica: r = 0,46, p < 0,01 (maior correlação);
Inteligência Verbal: r = 0,38, p < 0,01;
Inteligência Geral (g): r = 0,35, p < 0,01;
Inteligência Figural: r = 0,02, não significativa.

Subescalas: Entre as subescalas, a “Séries Numéricas” apresentou a correlação mais elevada com ELO (r = 0,44, p < 0,01), sugerindo que raciocínio indutivo no domínio numérico se relaciona moderadamente bem com a força de jogo. Já as subescalas de seleção de figuras e rotação mental de cubos (componentes puramente visuo-espaciais) não apresentaram correlações significativas com ELO, indicando que habilidades de manipulação espacial clássica não predizem diretamente o nível de expertise em xadrez.

2. Experiência em xadrez e atividade em torneios

Dados biográficos:

Idade de início em xadrez: r = –0,38, p < 0,01 (quanto mais cedo, maior ELO).
Idade de filiação a clube: r = –0,50, p < 0,01 (início mais precoce em clubes associado a melhor nível).
Atividade recente em torneios: Número de partidas em 2003-2004: r = 0,45, p < 0,01 (quantidade de jogos correlaciona-se positivamente ao ranking).
Percentual de resultados positivos: r = 0,50, p < 0,01 (melhor desempenho reflete-se em ranking mais alto).
Contribuições independentes: Ainda que fosse esperada forte relação entre número de partidas e desempenho, a correlação parcial entre ELO e quantidade de jogos, controlando-se pela eficácia em torneios, manteve-se significativa (r = 0,34, p < 0,01), sugerindo que simplesmente participar de mais partidas em torneios está associado a expertise, independente de resultados pontuais.

3. Atitudes e motivação em relação ao xadrez

Importância subjetiva do xadrez (quanto o indivíduo valoriza o jogo em sua vida): r = 0,28, p < 0,01;
Motivação para desempenho em xadrez (desejo de superar outros e exigência consigo mesmo): r = 0,39, p < 0,01.
Prazer ao jogar e motivação para prática deliberada* não se correlacionaram significativamente com ELO.
Embora 66% dos participantes relatem praticar com material escrito em média 1,5 hora/semana e 57% joguem com outros, nenhuma das estimativas de horas atuais de prática (individual ou em grupo) correlacionou-se positivamente com ELO. Em vez disso, tais estimativas mostraram-se mais associadas ao nível de motivação para praticar (r = 0,43, p < 0,01), sugerindo que autoavaliações de prática podem refletir atitude mais do que prática efetiva.

4. Traços de personalidade e competências emocionais

NEO-FFI (Big Five): Nenhum dos cinco fatores (neuroticismo, extroversão, abertura, amabilidade, conscienciosidade) apresentou correlação significativa com ELO.

FEK (Competências Emocionais): A única subescala que se relacionou a nível significativo foi controle da expressão emocional (r = 0,27, p = 0,01), indicando que jogadores mais fortes tendem a ter maior habilidade em controlar o que demonstram emocionalmente durante o jogo.

5. Regressão múltipla

Variáveis que entraram no modelo de regressão para predizer ELO (R² ajustado = 0,55; F\[6,81] = 18,65, p < 0,01):

1. Idade de filiação a clube (β = –0,44; p < 0,01);
2. Número de partidas em torneio (β = 0,33; p < 0,01);
3. Controle da expressão emocional (FEK) (β = 0,20; p < 0,01);
4. Inteligência Numérica (β = 0,31; p < 0,01);
5. Idade atual (β = 0,28; p < 0,01);
6. Motivação para desempenhar bem no xadrez (β = 0,17; p < 0,05).
Em outro modelo restrito apenas a medidas de inteligência, Inteligência Numérica foi o único preditor significativo, explicando cerca de 22% da variância em ELO (R² ajustado = 0,20; F\[1,88] = 12,15, p < 0,01).

Discussão e Implicações

1. Jogadores de xadrez têm QI elevado?

Em termos absolutos, a amostra de jogadores de torneio apresentou médias de QI gerais, verbal e numérico acima da média normativa. Em particular, o componente numérico manifestou desvio padronizado de aproximadamente +1 DP, indicando superioridade notável em tarefas aritméticas e de raciocínio numérico em comparação à população geral.

A correlação moderada entre QI Geral (r = 0,35) e, sobretudo, QI Numérico (r = 0,46) com o ranking ELO sugere que jogadores de xadrez de torneio mais fortes tendem a ter habilidades intelectuais gerais acima da média, especialmente no domínio numérico. Ainda que a magnitude dessa correlação não seja altíssima, ela é consistente e estatisticamente significativa, indicando que o xadrez exige certo nível de capacidade cognitiva geral, e não funciona isoladamente de outras habilidades mentais superiores.

Em contrapartida, o componente visuo-espacial convencional (QI Figural), medido por testes de rotação mental e seleção de figuras, não se correlacionou com ELO. Isso implica que, embora processos visuo-espaciais sejam fundamentais para entender e manipular padrões no tabuleiro, as habilidades avaliadas por testes de QI visuo-espacial tradicionais não capturam as competências específicas envolvidas no xadrez, que provavelmente dependem de estruturas de conhecimento de posições de peças e reconhecimento de padrões, mais do que de rotação mental pura.

2. Integração entre experiência e inteligência

A forte contribuição da idade de entrada em clube e do número de partidas em torneio reforça a ideia de que experiência de longo prazo é crucial para atingir altos níveis de desempenho (Ericsson & Lehmann, 1996). Contudo, o fato de QI Numérico ainda explicar parcela significativa da variação em ELO, mesmo após controlar variáveis de experiência, indica que jogadores mais inteligentes tendem a se beneficiar mais, em termos de conversão de experiência em desempenho superior.

Essa combinação de experiência e habilidades cognitivas sugere que, embora o xadrez seja um domínio aprendível por meio de prática deliberada, existe um certo limiar cognitivo que facilita o desenvolvimento de expertise. No entanto, observam-se jogadores que ultrapassaram 2200 ELO com QI numérico em torno de 110–115, demonstrando que não é necessário ter QI extremamente alto para se tornar expert; basta possuir *QI ligeiramente acima da média* e investir prática consistente.

3. Papel das competências emocionais

A correlação entre controle da expressão emocional e ELO (r = 0,27) indica que jogadores mais fortes possuem maior capacidade de gerenciar externamente suas emoções, o que pode auxiliar na manutenção de calma sob pressão e na tomada de decisões mais racionais durante partidas críticas. Essa habilidade não é necessariamente sinônimo de “ser frio”, mas sim de regulação emocional estratégica, evitando que reações espontâneas influenciem negativamente o raciocínio.

4. Implicações práticas

Para treinadores e clubes de xadrez, os resultados apontam para a importância de identificar jovens jogadores com bom potencial cognitivo, especialmente em raciocínio numérico, e ao mesmo tempo promover prática deliberada orientada (uso de materiais didáticos, análise de partidas de alta qualidade e treino sistemático) desde cedo.

Desenvolver programas de treinamento que fortaleçam o controle emocional durante o jogo (por meio de simulações de torneios, aprendizagem de técnicas de respiração, reflexão sobre cenários de adversidade) pode contribuir para melhores desempenhos em torneios de alto nível.

5. Limitações e perspectivas futuras

Por se tratar de estudo transversal, não é possível determinar a direção causal da relação entre QI e desempenho em xadrez. Estudos longitudinais que acompanhem a evolução de crianças e adolescentes no xadrez, correlacionando trajetórias de QI e mudanças em ELO ao longo do tempo, seriam essenciais para esclarecer se QI elevado facilita o progresso ou se a prática intensa em xadrez desenvolve certas habilidades cognitivas específicas.

Explorar mais a fundo os aspectos visuo-espaciais específicos do xadrez (por exemplo, padrões de peças, memorização de estruturas táticas) por meio de testes cognitivos mais afinados a esse domínio poderia elucidar por que o QI Figural tradicional não se relacionou com ELO. Talvez a ferramenta de avaliação precise capturar componentes como memória de posições e reconhecimento de padrões estratégicos, não apenas rotação mental.

Amostras futuras deveriam incluir número maior de grandes mestres e analisar a possível existência de plateau de QI em níveis muito altos de ELO, bem como investigar a interação entre fatores genéticos (tais como variações em genes relacionados ao processamento cognitivo) e variáveis ambientais (treinadores, qualidade de clubes, acesso a recursos).

Conclusão

O estudo de Grabner, Stern e Neubauer (2007) demonstra, de forma robusta, que jogadores de xadrez de torneio apresentam, em média, QI geral e, especialmente, QI numérico *acima da média populacional, e que essas habilidades cognitivas gerais se associam moderadamente ao nível de expertise, conforme medido pelo ranking ELO. Além disso, indica que experiência de longa data, prática regular em torneios e competências emocionais (como controle da expressão emocional) também são determinantes relevantes. Portanto, jogadores de xadrez não possuem QI “muito alto” em termos absolutos (ou seja, não são em geral superdotados no sentido estrito), mas tendem a apresentar QI ligeiramente acima da média, o que, combinado a uma trajetória consistente de prática e a uma regulação emocional eficaz, contribui para alcançar níveis elevados de desempenho.

Observação pessoal: notei, ao revisar estudos correlacionando habilidades cognitivas e desempenho em domínios especializados, que muitas vezes as medidas tradicionais de QI não capturam nuances específicas de cada área, como ocorre com a habilidade visuo-espacial no xadrez

Referência

Grabner, R. H., Stern, E., & Neubauer, A. C. (2007). Individual differences in chess expertise: A psychometric investigation. Acta Psychologica, 124(3), 398–420. doi:10.1016/j.actpsy.2006.07.008

Alguns destaques

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