Os Fundamentos Filosóficos da Teoria da Superdotação: Uma Análise Histórica

O conceito de superdotação é um fenômeno complexo e sua compreensão evoluiu por meio de várias fases históricas, que refletem diferentes visões sobre o tema. Embora essas concepções sejam frequentemente tratadas como alternativas, uma análise filosófica revela uma progressão histórica que moldou a maneira como a superdotação é entendida na psicologia contemporânea.

O primeiro estágio histórico remonta à Idade Média, quando o termo “superdotação” (giftedness) surgiu em um contexto religioso para explicar a capacidade humana de criar. A criação era vista como uma dádiva divina, um “dom de Deus” que permitia ao ser humano criar, com a fé servindo como base para essa habilidade. No segundo estágio, durante o Renascimento, a ascensão do trabalho assalariado e a valorização da individualidade levaram a uma nova visão. A superdotação passou a ser associada a habilidades inatas e era vista como a causa do produto criado. Esse período, marcado pelo culto aos heróis e personalidades excepcionais como Leonardo da Vinci e Michelangelo, deu origem à necessidade de diagnosticar aptidões e inclinações para a formação profissional.

O terceiro estágio ocorreu na filosofia da Idade Moderna, que se concentrou no conhecimento como a principal característica da humanidade, ignorando a superdotação como um problema individual. Filósofos como John Locke e René Descartes não consideravam a capacidade de abstração como inata ou um “dom de Deus,” mas sim como um produto do aprendizado ou uma “possibilidade”. Essa visão culminou na dialética de Georg W. F. Hegel, que introduziu o conceito de processo e desenvolvimento, ressaltando que o conceito de superdotação não poderia ser repetido em diferentes níveis de desenvolvimento social e de conhecimento.

O quarto estágio, a partir de meados do século XIX, viu a psicologia se estabelecer como uma ciência independente, o que levou a uma redução da superdotação ao nível de intelecto e, posteriormente, ao nível de qualquer habilidade, impulsionada pelo psicometrismo. Francis Galton, considerado o “pai” dessa temática, reduziu o conceito de criatividade ao intelecto para que pudesse ser medido e replicado, devido às exigências da metodologia científica. No entanto, ele também reconheceu a importância da motivação e da “dedicação à causa”. Mais tarde, a psicologia psicométrica, exemplificada por J. P. Guilford, propôs a diferenciação da superdotação em três tipos separados (acadêmica, intelectual e criativa), baseando-se em testes diagnósticos, como testes de QI e de criatividade. Essa abordagem, na qual o método de medição define o conceito, exauriu-se ao não conseguir explicar o potencial criativo para além das capacidades intelectuais.

O quinto e atual estágio, conforme proposto por D. B. Bogoyavlenskaya, baseia-se na metodologia dialética introduzida na psicologia por Lev Vygotsky. Essa abordagem supera a redução da superdotação a componentes isolados (como o intelecto) e foca na superdotação como uma qualidade sistêmica onde “o intelecto se encontra com o afeto”. A superdotação, neste contexto, é definida como a capacidade de desenvolver uma atividade por iniciativa própria, além das demandas iniciais de uma tarefa. Essa capacidade de ir além das exigências, explorando o “não predeterminado” ou o “novo”, é considerada o mecanismo fundamental da criatividade e uma característica essencialmente humana. O método do “Campo Criativo” (Creative Field), desenvolvido pela autora, permite diagnosticar essa capacidade, oferecendo um novo tipo de experimento que analisa a atividade do indivíduo além da solução de tarefas e no qual o sujeito revela sua própria iniciativa.

Em suma, a trajetória do conceito de superdotação, desde uma dádiva divina até uma capacidade sistêmica e intrinsecamente humana de desenvolver a própria atividade, demonstra uma evolução profunda. O método de “Campo Criativo” representa um avanço significativo, permitindo uma análise holística da superdotação que integra o aspecto espiritual/motivacional com o técnico/operacional, oferecendo uma nova perspectiva para a pesquisa e o diagnóstico na área.

Referência:

Bogoyavlenskaya, D. B. (2019). Philosophical Fundamentals of the Theory of Giftedness. Cultural-Historical Psychology, 15(2), 14-21. https://doi.org/10.17759/chp.2019150202

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