O debate em torno da caracterização e do diagnóstico da superdotação tem uma longa história, mas continua a ser um desafio para educadores e pesquisadores. A falta de clareza na definição do fenômeno afeta diretamente a identificação de crianças superdotadas, o desenvolvimento de programas educacionais direcionados e o progresso da pesquisa na área. Uma revisão sistemática recente, analisando 104 artigos e mais de 77.000 crianças, buscou esclarecer as características que distinguem crianças superdotadas de seus pares com desenvolvimento típico em domínios cognitivos, psicofisiológicos e psicológicos.
Características Cognitivas e Psicofisiológicas
No nível cognitivo, os resultados da revisão indicam que crianças superdotadas geralmente superam seus pares em várias áreas. Elas demonstram desempenho superior em tarefas relacionadas à memória de trabalho verbal, atenção seletiva e divisão da atenção. No entanto, a pesquisa revela um padrão de “trade-off” entre velocidade e precisão em tarefas de atenção. Em tarefas de atenção seletiva, por exemplo, crianças superdotadas são mais rápidas, mas não necessariamente mais precisas. Em contrapartida, em tarefas de atenção sustentada, elas são mais precisas, mas não mais rápidas. Em tarefas de atenção dividida, mostram superioridade tanto em velocidade quanto em precisão.
O estudo também destaca a superioridade de crianças superdotadas na resolução de problemas geométricos e no processamento elementar de informações, onde demonstram tempos de reação mais curtos. Curiosamente, essa vantagem cognitiva não se estende a todas as tarefas. Por exemplo, em tarefas de planejamento como a Torre de Hanói/Londres, o desempenho de crianças superdotadas em termos de número de movimentos não difere do de seus pares.
As avaliações psicofisiológicas fornecem insights sobre a base neural dessas diferenças. A atividade cerebral de crianças superdotadas é mais intensa e acelerada durante processos cognitivos complexos e que exigem esforço. Estudos de potenciais relacionados a eventos (ERPs) mostram maior amplitude e menor latência dos componentes N2 e P3 em crianças superdotadas, o que é interpretado como um processamento de conflito e uma alocação de atenção mais eficaz e rápida. A pesquisa sugere que essas diferenças neurológicas são mais pronunciadas em tarefas complexas, sugerindo que crianças superdotadas podem empregar recursos neurais adicionais ou de forma mais eficiente para superar desafios.
Características Psicológicas e Comportamentais
Além das habilidades cognitivas e fisiológicas, a revisão sistemática também identificou características psicológicas e comportamentais distintas em crianças superdotadas. Elas obtêm pontuações mais altas em testes que medem motivação intrínseca, autoeficácia e abertura à experiência. Em particular, a motivação intrínseca, definida como o engajamento em uma atividade por interesse e prazer, é consistentemente maior nesse grupo. A autoeficácia, ou a percepção de suas próprias capacidades, também é mais elevada em áreas acadêmicas e de autorregulação. No entanto, não foram encontradas diferenças na autoeficácia social, o que se alinha com resultados que não mostram vantagens na adaptação social.
A revisão também confirma que crianças superdotadas geralmente alcançam notas escolares mais altas e empregam melhores estratégias de resolução de problemas. Essa superioridade pode ser resultado de sua capacidade de ativar o processamento “top-down” de forma mais rápida e intensiva, permitindo-lhes alocar recursos cognitivos limitados de maneira mais eficiente. A identificação dessas características pode ser um guia valioso para a criação de ambientes educacionais que ofereçam desafios intelectuais adequados, atendendo às necessidades únicas dessa população e promovendo seu bem-estar.
Desafios Metodológicos e Direções Futuras
Apesar desses avanços, a pesquisa sobre superdotação enfrenta desafios significativos. A falta de padronização nas metodologias, a terminologia inconsistente para funções cognitivas e as variações nos critérios para a identificação de superdotação dificultam a comparação e a síntese dos resultados. A maioria dos estudos utiliza testes como a Escala de Inteligência de Wechsler (WISC), mas há uma tendência crescente de adotar medidas mais culturalmente adequadas e não-verbais, como as Matrizes de Raven, especialmente em países onde o inglês não é a primeira língua. A necessidade de um consenso universal sobre o limiar para definir a superdotação é evidente para avançar na área.
A revisão sugere um roteiro de sete etapas para futuras pesquisas, visando melhorar a qualidade e a comparabilidade dos estudos. Esse roteiro inclui a correspondência da terminologia, a justificação dos critérios de seleção, a descrição detalhada da amostra e dos paradigmas de avaliação, a especificação dos limiares de significância estatística, a realização de análises correlacionais e a disponibilização dos dados em repositórios abertos. Abordagens que vão além da divisão binária “superdotado versus não-superdotado” e que utilizam modelos correlacionais são encorajadas para capturar a complexidade da inteligência humana.
Referência:
Kuznetsova, E., Liashenko, A., Zhozhikashvili, N., & Arsalidou, M. (2024). Giftedness identification and cognitive, physiological and psychological characteristics of gifted children: a systematic review. Frontiers in Psychology, 15, 1411981. doi: 10.3389/fpsyg.2024.1411981.

