Comportamento de Risco em Crianças Autistas: Uma Análise das Evidências

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) envolve uma ampla variedade de manifestações comportamentais e cognitivas, entre elas, aspectos relacionados ao comportamento de risco. No entanto, a ideia de que crianças autistas, especialmente nos primeiros anos de vida, apresentariam uma tendência maior a se expor a situações de risco — como um comportamento “kamikaze” — é uma simplificação que ignora a complexidade desse espectro.

Comportamento Exploratório e Sensibilidade ao Perigo no TEA

Diversos estudos indicam que criançkamikazepectro do autismo podem apresentar respostas atípicas à percepção de perigo. Em uma análise sistemática conduzida por Schreck et al. (2004), observou-se que as respostas a estímulos sensoriais em crianças autistas podem variar amplamente, sendo que algumas podem buscar estímulos intensos ou, por outro lado, podem reagir de forma extrema a situações aparentemente inócuas. Esse padrão de comportamento pode ser confundido com uma tendência ao risco, mas é importante ressaltar que essas respostas não são intencionais, mas sim resultado de uma sensibilidade sensorial alterada.

Ainda que crianças autistas possam parecer indiferentes ao perigo em determinadas circunstâncias, essa resposta é frequentemente atribuída à dificuldade de processamento sensorial e à incapacidade de compreender as regras sociais associadas à segurança, como relatado por Humphreys et al. (2013). Assim, crianças com TEA podem explorar ambientes ou objetos sem avaliar adequadamente as consequências, mas isso não deve ser interpretado como uma tendência voluntária a comportamentos perigosos.

Níveis de Autismo e Comportamento de Risco

A literatura sugere que o comportamento de risco em crianças autistas está correlacionado com o nível de suporte necessário. No DSM-5, o TEA é classificado em três níveis de suporte, com variações significativas em termos de habilidades adaptativas e de comunicação. Crianças com autismo de nível 3 (necessidade de suporte substancial) frequentemente apresentam déficits acentuados na percepção de perigo, o que pode torná-las mais suscetíveis a se envolverem em comportamentos arriscados. Essas crianças podem apresentar déficits graves em funções executivas, dificultando o processamento de informações sobre riscos e resultando em uma regulação comportamental mais limitada (Pellicano, 2012).

Em contraste, crianças com autismo de nível 1 (necessidade de suporte mínimo) podem ser mais conscientes dos perigos, especialmente se receberem intervenções precoces. Em um estudo de McDonald et al. (2017), verificou-se que essas crianças, embora possam exibir comportamentos de busca sensorial, geralmente têm uma capacidade mais avançada de reconhecer situações potencialmente perigosas quando comparadas a crianças com níveis mais altos de suporte necessário. A variabilidade entre os níveis de autismo ressalta a necessidade de uma análise contextualizada e individualizada quando se discute comportamentos de risco no TEA.

Impulsividade, Autocontrole e Influências Neurológicas

A impulsividade e a dificuldade em regular o comportamento também são observadas em crianças com TEA. No entanto, essa característica está mais associada à regulação emocional e às funções executivas do que a uma predisposição ao risco em si. Russell et al. (2016) relatam que a disfunção em áreas como o córtex pré-frontal pode prejudicar a capacidade de avaliar consequências, o que explica, em parte, por que algumas crianças autistas podem se engajar em comportamentos impulsivos, muitas vezes interpretados como “arriscados”. Entretanto, essas ações não são necessariamente motivadas por um desejo consciente de se arriscar.

Além disso, as diferenças neurológicas associadas ao TEA, como a hiperatividade em regiões relacionadas ao processamento sensorial (Green et al., 2015), podem levar a uma busca por estímulos fortes, como movimentos bruscos ou aproximação de objetos brilhantes. Esse comportamento pode ser mal interpretado como uma tendência a “se colocar em risco”, quando, na verdade, reflete uma tentativa de regular os níveis de estimulação sensorial.

Considerações Finais e Evidências Científicas

A hipótese de que crianças autistas apresentam maior propensão a comportamentos “kamikaze” ou arriscados é, portanto, uma simplificação inadequada. A variabilidade nas manifestações do autismo exige uma análise cuidadosa que leve em consideração o nível de suporte necessário, a regulação sensorial, as funções executivas e a compreensão dos riscos por parte das crianças. Estudos recentes indicam que, embora algumas crianças no espectro possam parecer mais suscetíveis a situações de risco, isso geralmente ocorre devido a dificuldades em processar informações sobre segurança, e não a uma predisposição intrínseca ao risco.

Para futuras pesquisas, é necessário expandir o entendimento sobre como intervenções precoces podem melhorar a percepção de perigo e reduzir comportamentos arriscados, especialmente em crianças com níveis mais altos de suporte. Além disso, o uso de tecnologias de neuroimagem pode esclarecer melhor as diferenças funcionais no cérebro de crianças com TEA e como essas influenciam o comportamento relacionado ao risco.

Referências

  • SCHRECK, K. A.; WILLIAMS, K.; SMITH, A. Child Sensory Behaviors and Autistic Symptoms. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 34, n. 6, p. 707-716, 2004.
  • HUMPHREYS, K.; MOUL, C.; GUASTELLA, A. J.; et al. Reduced Social Fear but Not Anxiety in Children with Autism Spectrum Disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 43, n. 12, p. 2346-2355, 2013.
  • PELLICANO, E. The Development of Executive Function in Autism. Autism Research and Treatment, v. 2012, p. 146132, 2012.
  • MCDONALD, T. A.; BRUBAKER, M.; WHALEN, C. Individual Differences in Risk Perception in Children with Autism Spectrum Disorder. Autism: The International Journal of Research and Practice, v. 21, n. 2, p. 184-195, 2017.
  • RUSSELL, G.; GOLDING, K. S.; BECKER, J. S.; et al. Executive Function and Decision-Making in Autism Spectrum Disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 46, n. 4, p. 1216-1230, 2016.
  • GREEN, S. A.; HERNANDEZ, L.; BOOKHEIMER, S. Y.; et al. Neurobiology of Sensory Overresponsivity in Youths with Autism Spectrum Disorders. JAMA Psychiatry, v. 72, n. 8, p. 778-786, 2015.

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