João Marcello Borba Leite – Neurologista
O conceito de inteligência desperta fascínio e controvérsia desde a criação dos primeiros testes psicométricos por Alfred Binet no início do século XX. Hoje, sabemos que a inteligência é um traço contínuo, fortemente influenciado por fatores genéticos e ambientais, cuja expressão varia ao longo do desenvolvimento. Nesse contexto, a pergunta central para pais, professores e profissionais de saúde é: quando realmente faz sentido aplicar um teste de QI individual em crianças?
Do ponto de vista científico, a correlação entre QI na infância e QI na vida adulta é apenas modesta antes dos 7 anos, aumenta progressivamente e torna-se mais robusta a partir dos 12 anos de idade, alcançando correlações de 0,7–0,8 com os escores adultos (Deary et al., 2010; Plomin & von Stumm, 2018). Isso significa que avaliações precoces podem gerar classificações instáveis, enquanto a partir do final da infância há maior confiabilidade. Essa constatação coloca em xeque a prática de testagem universal ou muito precoce apenas por curiosidade diagnóstica.
Outro ponto frequentemente debatido é a chamada assincronia entre “idade cognitiva” e “idade emocional”. Crianças com QI elevado podem raciocinar como adolescentes, mas ainda reagirem emocionalmente como pares da mesma idade cronológica. Isso pode gerar sintomas como perfeccionismo, ansiedade, dificuldade em tolerar frustrações e isolamento social (Gross, 2004; Neihart, 2016). Entretanto, pesquisas recentes mostram que essa discrepância é mais evidente em casos de superdotação profunda (QI >145, percentil 99,9), enquanto crianças na faixa de 120–140 costumam se adaptar bem, sobretudo em ambientes educacionais enriquecidos. Assim, o descompasso existe, mas não deve ser superestimado nem usado como justificativa isolada para testagem massiva.
Há ainda os riscos da rotulação: divulgar que uma criança é “superdotada” pode gerar estigmatização social, cobranças excessivas e expectativas irreais. Mesmo em adultos, o conceito de inteligência é de difícil assimilação emocional, e isso se intensifica em fases iniciais da vida. Por esse motivo, a maioria dos protocolos internacionais recomenda que a avaliação individual só seja indicada quando há impacto funcional real: por exemplo, forte suspeita de necessidade de adiantamento escolar após os 7–8 anos, discrepância gritante entre desempenho e série cursada, ou sofrimento emocional evidente decorrente de desajuste cognitivo (Pfeiffer, 2015; Subotnik et al., 2011).
É importante diferenciar também entre rastreamento populacional e avaliação individual. O rastreamento, quando realizado com instrumentos mais breves, pode ter lugar em contextos educacionais de alta qualidade, com a finalidade clara de identificar jovens talentos e realocá-los para programas especiais de ensino ou atividades diferenciadas. Entretanto, esse processo deve ocorrer sem divulgação ampla dos resultados, evitando estigmatizar colegas que não sejam selecionados. Além disso, rastrear sem um projeto concreto de aproveitamento de talentos é eticamente questionável e cientificamente inócuo: se não há mudança de conduta para os identificados, a testagem perde seu propósito.
Portanto, a posição mais alinhada às evidências atuais é clara: não se deve realizar avaliação neuropsicológica de rotina para superdotação em todas as crianças. O teste de QI individualizado deve ser reservado para situações em que há consequência prática evidente — como suspeita de talento extraordinário que exija flexibilização curricular, ou quando há sinais inequívocos de sofrimento psíquico pelo descompasso cognitivo-emocional. Nos demais casos, a observação clínica, o acompanhamento escolar e o estímulo a ambientes intelectualmente enriquecidos são medidas suficientes.
Em síntese, a testagem precoce e indiscriminada tende a produzir mais riscos que benefícios. A ciência atual aponta para um uso seletivo, criterioso e funcional dos testes de QI, respeitando o desenvolvimento natural das crianças e evitando expectativas desnecessárias. Afinal, identificar talentos deve servir para favorecer seu florescimento, nunca para aprisionar crianças em rótulos ou comparações.
Referências
Deary IJ, et al. Intelligence across the life course. Nat Rev Neurosci. 2010;11(5):325–35.
Plomin R, von Stumm S. The new genetics of intelligence. Nat Rev Genet. 2018;19(3):148–59.
Shaw P, et al. Intellectual ability and cortical development in children and adolescents. Nature. 2006;440(7084):676–9.
Gross MUM. Exceptionally Gifted Children. 2nd ed. Routledge; 2004.
Neihart M. The socioaffective impact of acceleration and ability grouping. Gift Child Q. 2016;60(2):83–94.
Pfeiffer SI. Essentials of Gifted Assessment. Wiley; 2015.
Subotnik RF, Olszewski-Kubilius P, Worrell FC. Rethinking giftedness and gifted education. Psychol Sci Public Interest. 2011;12(1):3–54.