Variabilidade Perceptual e Sensibilidade Térmica no Transtorno do Espectro Autista: Evidências Contra a Hipotese de Hipossensibilidade Sensorial

A percepção sensorial atípica em indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem sido amplamente discutida na literatura, especialmente no que tange à aparente hiporreatividade a estímulos térmicos. Observações clínicas e relatos parentais frequentemente mencionam uma “indiferença à dor ou temperatura”, o que levou muitos pesquisadores a propor que esses indivíduos apresentam limiares perceptivos elevados para estímulos térmicos. Contudo, a robustez empírica dessa hipótese é limitada. O estudo conduzido por Williams et al. (2019) representa um dos esforços mais abrangentes para esclarecer esta questão por meio de medidas psicofísicas objetivas, e seus achados oferecem uma crítica contundente à suposição tradicional de hipossensibilidade térmica no TEA.

Utilizando um protocolo padronizado de limiar psicofísico do tipo método dos limites, os autores avaliaram limiares de detecção de calor e frio em uma amostra expressiva de 142 participantes (83 com TEA e 59 com desenvolvimento típico), abrangendo ampla faixa etária (7 a 54 anos). Contrariando a hipótese da hipossensibilidade, os resultados indicaram que os limiares térmicos médios de detecção foram estatisticamente equivalentes entre os grupos. Essa equivalência foi confirmada por meio de testes estatísticos robustos que controlam para a não-normalidade da distribuição dos dados – um aspecto frequentemente negligenciado em estudos anteriores e que pode gerar falsos positivos.

Contudo, a investigação revelou uma diferença significativa em outra dimensão: a variabilidade intraindividual entre os testes, medida por meio do desvio médio de Gini (GMD). Indivíduos com TEA apresentaram maior variabilidade nas respostas ao longo das tentativas, sugerindo um aumento no chamado “ruído perceptual”. Essa variabilidade mostrou-se fortemente correlacionada com os limiares de detecção térmica, indicando que parte das elevações observadas nos limiares pode ser atribuída à inconsistência nas respostas, e não a uma menor sensibilidade sensorial propriamente dita.

Outro achado notável é que variáveis como quociente de inteligência (QI de desempenho), sexo e idade foram preditores mais consistentes de elevação nos limiares térmicos do que o diagnóstico de TEA. Em particular, escores mais baixos de QI de desempenho correlacionaram-se com limiares mais altos, e, após o controle dessa variável, a associação entre diagnóstico e limiar se tornou estatisticamente não significativa. Isso sugere que estudos anteriores que relataram hipossensibilidade térmica no TEA podem ter sido influenciados por diferenças não controladas em QI.

É interessante notar que, embora os participantes com TEA tenham relatado com maior frequência, por meio de questionários, comportamentos associados à hiporreatividade sensorial (por exemplo, menor responsividade a estímulos sensoriais), essas autorreferências não se correlacionaram significativamente com os limiares de detecção obtidos experimentalmente. Essa dissociação entre medidas subjetivas e objetivas reforça a hipótese de que a hiporreatividade observada em contextos clínicos pode ter origem em processos neurocognitivos mais complexos – como modulação da atenção, reatividade emocional ou representação cognitiva do estímulo – e não unicamente em alterações periféricas de detecção sensorial.

Em termos metodológicos, o estudo destaca um ponto crucial: os limiares de detecção determinados pelo método dos limites dependem da velocidade de resposta do participante, o que levanta a possibilidade de que as diferenças observadas em limiares sejam influenciadas por variações no tempo de reação. Essa questão é especialmente relevante no TEA, dado que variações no tempo de resposta e sua variabilidade têm sido amplamente documentadas na população autista, muitas vezes associadas à comorbidade com sintomas de TDAH.

Portanto, as evidências reunidas por Williams et al. (2019) sugerem que a hiporreatividade térmica frequentemente atribuída a indivíduos com TEA não se deve a uma diminuição genuína da sensibilidade térmica, mas pode ser explicada por fatores como variabilidade perceptual, desempenho cognitivo e diferenças em processos de resposta motora e atenção. Isso implica uma necessidade de revisão crítica das interpretações clássicas sobre as bases sensoriais do TEA, bem como um chamado para o uso de métodos experimentais mais precisos e independentes do tempo de reação nas futuras investigações sobre percepção sensorial nessa população.

Referência:
WILLIAMS, Z. J. et al. Thermal perceptual thresholds are typical in Autism Spectrum Disorder but strongly related to intra-individual response variability. Scientific Reports, v. 9, n. 1, p. 12595, 2019. DOI: Thermal Perceptual Thresholds are typical in Autism Spectrum Disorder but Strongly Related to Intra-individual Response Variability – Scientific Reports (https://doi.org/10.1038/s41598-019-49103-2).

Related posts

Analogia entre QI, inteligência fluida/cristalizada e hardware de computador

Genética, cognição e sincronia cerebral: o papel do gene SETD1A na atividade neural

Estudo do CPAH sobre biohacking da longevidade é publicado em periódico internacional de ciências da saúde