Alterações na Sensibilidade Térmica em Adolescentes com Transtorno do Espectro Autista: Implicações Clínicas e Neurobiológicas

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é tradicionalmente descrito por déficits nas áreas de comunicação social e comportamentos repetitivos, mas alterações sensoriais – especialmente no processamento de estímulos térmicos – têm ganhado crescente relevância científica e clínica. No artigo Decreased Sensitivity to Thermal Stimuli in Adolescents With Autism Spectrum Disorder: Relation to Symptomatology and Cognitive Ability, Duerden et al. (2015) investigam com rigor metodológico como adolescentes com TEA processam estímulos térmicos, comparando-os com pares típicos em desenvolvimento. O estudo lança luz sobre uma faceta frequentemente negligenciada do espectro autista: a modulação atípica da sensibilidade térmica.

Utilizando um protocolo padronizado de quantitative sensory testing (QST), os autores identificaram que adolescentes com TEA apresentam limiares significativamente mais altos para detecção de calor e mais baixos para detecção de frio, ou seja, uma hipossensibilidade térmica para estímulos não nocivos. Curiosamente, os limiares de dor térmica (calor ou frio doloroso) não diferiram significativamente entre os grupos. Essa dissociação funcional sugere que as alterações sensoriais no TEA podem estar mais ligadas à percepção de estímulos sutis do que à nocicepção propriamente dita (Duerden et al., 2015).

Os achados são especialmente relevantes porque apontam para possíveis mecanismos neurobiológicos subjacentes. A percepção de calor envolve fibras C amielínicas específicas, enquanto a dor térmica envolve nociceptores polimodais C e A-delta. A integridade funcional das primeiras pode estar comprometida no TEA, sem necessariamente afetar as vias nociceptivas. Isso poderia indicar uma reorganização periférica dos sistemas sensoriais ou alterações centrais em áreas corticais somatossensoriais, como sugerido por estudos prévios correlacionando espessura cortical com percepção térmica em indivíduos com autismo (Duerden et al., 2015).

Um ponto que me chamou atenção foi a correlação entre desempenho cognitivo (medido por QI) e os limiares térmicos em adolescentes com TEA. Limiares mais alterados estavam associados a menores escores de QI, o que sugere que déficits atencionais e dificuldades de processamento perceptual podem mediar, ao menos em parte, essas alterações sensoriais. No entanto, como os limiares de dor não seguiram a mesma correlação, é plausível que existam mecanismos fisiológicos independentes do funcionamento cognitivo interferindo na percepção térmica (Duerden et al., 2015).

Ainda mais intrigante foi o relato de sensações térmicas paradoxais por parte de 30% dos adolescentes com TEA – eles descreveram a sensação de frio extremo como uma dor de calor queimante. Esse fenômeno raro em populações neurotípicas (cerca de 0,6% dos adultos) pode indicar disfunções na integração sensorial de fibras C, possivelmente por desinibição central ou reorganização aferente periférica. Essa hipótese abre caminhos interessantes para investigações neurofisiológicas mais aprofundadas (Duerden et al., 2015).

Do ponto de vista clínico, os dados reforçam a necessidade de avaliar com mais cuidado a sensibilidade à dor e ao desconforto em indivíduos com TEA. A hiporreatividade pode mascarar sintomas clínicos relevantes, dificultando o diagnóstico e o manejo adequado da dor, especialmente em pacientes com déficits linguísticos ou cognitivos. A implementação de testes sensoriais objetivos, como o QST, pode contribuir para práticas clínicas mais sensíveis e individualizadas.

O estudo também chama atenção para limitações metodológicas recorrentes em pesquisas com populações neurodivergentes. Por exemplo, os autores reconhecem que o método de avaliação utilizado – method of limits – depende do tempo de reação dos participantes, o que pode ser influenciado por fatores cognitivos como atenção e compreensão. A ausência de avaliação de QI nos adolescentes típicos também limita a interpretação de algumas comparações. Apesar disso, os resultados são robustos, replicados mesmo em análises com amostras pareadas por idade, sexo e dominância manual (Duerden et al., 2015).

Em síntese, este estudo oferece uma contribuição valiosa ao demonstrar, com base empírica sólida, que adolescentes com TEA possuem um perfil sensorial atípico caracterizado por hipossensibilidade a estímulos térmicos não nocivos. As implicações vão além da compreensão neurofisiológica, alcançando a prática clínica e o planejamento de estratégias de cuidado mais eficazes. Notei, enquanto lia este artigo, como a sensibilidade sensorial, frequentemente vista como um “sintoma menor”, pode carregar implicações funcionais e emocionais profundas para os indivíduos com TEA.

Referência:
DUERDEN, Emma G. et al. Decreased sensitivity to thermal stimuli in adolescents with autism spectrum disorder: relation to symptomatology and cognitive ability. The Journal of Pain, v. 16, n. 5, p. 463–471, 2015. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jpain.2015.02.001. Disponível em: https://www.jpain.org. Acesso em: 20 jun. 2025.

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